23.11.08

"Um bocado de mim treme ainda de paixão atrás de uma porta onde já não mora ninguém, onde eu nunca morei. Nestas águas-furtadas que não conheceste morava um homem e no corpo dele era a minha morada. Mas eu não sabia. E neste noante já nada posso contra essa ignorância, não tenho como honrar o contrato carnal de habitação que estabelecêramos, às cegas. Imaginas um não-corpo a implorar beijos, saliva, suor e pele? A minha única âncora és tu, amigo sem lugar de perdição. Em ti, fuga das fugas, chama de segurança, fujo da paixão que me arrancou à vida.
E não procuro nenhum dos outros homens que amei, talvez porque nenhum deles tenha podido guardar mais do que o sabor breve do meu corpo. Amavam a novidade do nosso prazer, o meu sorriso, a minha paixão, o que eu tinha para dar.
Tu, sombriamente, amavas o que eu não dava - o ressentimento, a insegurança, a maternidade. Gostavas de me ver falhar, e não era por vaidade ou piedade, como geralmente acontece entre amigos. O meu lado medíocre não te excitava os melhores instintos. Amavas simplesmente a minha terra como uma criança ama uma pedra, um bocado de boneco, um urso sem olhos. É esse amor que agora me falta - o sujo, quotidiano amor dos momentos maus, das frases adversas, das ausências. Fotografavas-me em fúria, descabelada, a dormir de boca aberta, a lamber a tampa do iogurte. Ou, tantas vezes, com os olhos inchados de chorar. E eu ficava bem na fotografia.
Tão efémeras, as cumplicidades radiosas. Encontros de pele, de ideias, de atmosferas, flutuando como nuvens para o paraíso do esquecimento. Acreditava que o sentido da minha vida estava nesses encontros, e confronto-me agora com a falta que tu me fazes. Tu roubas-me o sentido, viciei-me nesse roubo, talvez seja ainda um vício do sentido, o supremo. Nós nunca fomos cúmplices, sabíamos demais um do outro. Éramos promíscuos. Dedicávamo-nos a combater o pensamento um do outro para chegarmos à névoa humana. Traías-me, traíste-me inúmeras vezes e nunca chegavas a tocar a fímbria da traição. Diziam que eu te perdoava tudo. Como se iludiam. Nunca tive nada para te perdoar, vejo-o agora, com uma nitidez impossível. Gostavas dessa forma de intimidade rápida que é a discórdia. Eu também. Éramos imperdoáveis, seremos imperdoáveis um do outro, cascos naufragados no negro incêndio do mar."

Fazes-me Falta ~ Inês Pedrosa

2 comentários:

xas disse...

É bom fazer as pazes...
É bom seguir em frente...

Não podes fazer as duas mas...
saberás o melhor rumo de certeza...

bj

Sissa disse...

ha muito que nao aparecia aqi



grande grande livro este*